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Rarear - Texto Curatorial: Douglas Freitas

 

RareAr | Shirley Paes Leme

 

A semântica, os significados e as simbologias das palavras são constantemente usados na produção da artista Shirley Paes Leme. São forças que norteiam ideias, agrupam pensamentos e, algumas vezes, constroem conceitualmente os trabalhos, como nas instalações “Lá vou eu em meu eu oval”[1], e “Cultura”[2]. As palavras ganham nas obras presença matérica.

 

A definição de rarear é tornar-se raro, menos denso, menos frequente. Rarear é a palavra que a artista usa para nomear sua exposição na Galeria Raquel Arnaud. No entanto, como nome da exposição, a palavra ganha uma letra em maiúsculo, que destaca a presença da palavra “Ar” na composição de “rarear”.

 

Se uma das questões centrais na produção de Paes Leme é a matéria, seja em sua transitoriedade ou nas marcas que certas ações sobre elas podem produzir, vale lembrar que o próprio “vazio” do espaço, o ar, é ele mesmo matéria. Em um de seus escritos Leonardo da Vinci teceu ideias sobre a relação entre o vazio e as coisas que ocupam o mundo. Segundo da Vinci, o ar “está cheio de infinitas linhas retas e radiantes, entrecruzadas e tecidas sem que ocupe jamais o curso de uma outra, e representam para cada objeto a verdadeira forma da sua razão (da sua explicação).[3]

 

Em “Resíduos da cidade”, iniciado na década de 1980 e desenvolvida pela artista até hoje, Shirley remove filtros de ar condicionado de carros para realizar desenhos e composições. Esses filtros de feltro sanfonado chegam para a artista tingidos de diversos tons de cinza, resultado da fumaça filtrada na passagem do ar. Junta-se à questão das palavras a matéria em si. Os desenhos da artista se constroem com matéria.[4]

 

Nesses desenhos do que foi capturado no ar da cidade, os filtros se abrem carregando as marcas das dobras originais, ou se articulam pelas dobras em composições. Carregam uma geometria que ora se

 

[1] Iniciado em 1984 e realizado em 2007 no Museu Universitário de Arte de Uberlândia – MG, “Lá vou eu em meu eu oval” a artista se apropria do palíndromo de Marina Wisnik para realizar uma instalação colaborativa com comunidades carentes e artistas, composta de ovos vazios, desenhos dos filhos da artista e vídeos. Os ovos vazios foram trazidos por pessoas da comunidade local que receberam em troca desenhos da artista. Os vídeos “A-E-I-O-U”, onde uma mão infantil guia uma mão adulta na escrita, e “La vou eu em meu eu oval” onde duas pessoas amparam o conteúdo de um ovo, são vídeos autônomos que integram a instalação.

[2] “Cultura” iniciada em 1984 e exibida em 2000 na exposição Bienal de São Paulo 50 anos, é uma instalação composta por esterco, larvas e mosquitos, vídeo, texto e vidro, que tem como peça fundamental o verbete de um dicionário encontrado pela artista onde como definição de cultura é dada como “Adubo, agricultura, civilização, colheita, conhecimentos, cultivação, cultivo, culto, educação, elegância, esmero, estudo, instrução, labor, lavoura, lavra, ornato, perfeição, política, polimento, preparo, requinte, sabedoria, saber”.  

[3] Paul Valéry em “Introdução ao método de Leonardo da Vinci”. São Paulo, 1998, Editora 34, p. 91.

[4] O desenho é uma constante na trajetória de artista e constitui parte considerável de sua produção. Neles controle e descontrole coabitam a partir de ações realizadas pela artista como a fixação da fumaça de uma chama, ou da teia de aranha coberta pela fuligem, a queima da pólvora, rastros de animais ou frutas em putrefação, marcas do corpo, e outras ações. São desenhos que ganham caráter de registro de uma ação performática da artista, ou de um evento efêmero da natureza.

 

planifica, ora se lança suavemente para fora do plano. Com um removedor, parte desses filtros são trabalhados, em um desenho feito pela remoção dessa matéria negra. São desenhos sem marcas precisas, se constroem em manchas de degradê, entre peso e leveza. Eles explicitam o peso do ar, registram a cidade, e são eles mesmos a própria cidade impregnada[1].
 

Já em “São Paulo à noite: Poema Concreto”, de 2014, três estantes repletas de livros de diversos assuntos estão pintadas de negro. As únicas informações que se fazem ver são poucas palavras nas lombadas dos livros, cuidadosamente eleitas pela artista. O que se constrói é um skyline, uma massa constante e similar que, como imagem icônica, lembra o desenho do horizonte das grandes cidades. Assim como nós habitamos as cidades, no trabalho as palavras habitam o skyline, e se nossas histórias também constituem a identidade da cidade, aqui a cidade também se faz de historias, das mais diversas possíveis, cheias de singularidades, como as cidades.

 

Talvez certa estaticidade banhe a exposição como um todo. Mas ela está presente justamente para apontar para a cidade em sua solidez matérica, presentificando também seus fluxos imateriais, e o próprio ar que respiramos nesse exato momento.

 

 

Douglas de Freitas

Agosto de 2019

 

[1] A artista recolheu esses filtros em diversas cidades e contextos. A origem e a época de uso do filtro interferem diretamente no resultado dos trabalhos, nas cores, nas densidades, na presença ou ausência de terra, por exemplo. Para esta exposição Shirley usou apenas filtros da cidade de São Paulo

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